sexta-feira, 29 de maio de 2009

Loucura no Estúdio

Todo mundo sabe que atingir a perfeição é impossível. É claro que eu nunca desejei isso, mas com o passar dos anos quis chegar a um ponto de equilíbrio na profissão, afinal, no início da carreira tinha aquela impulsividade (ou falta completa de juízo) característica dos vinte e poucos anos. Uma das histórias mais malucas e irresponsáveis da minha vida aconteceu numa rádio FM do interior paulista, onde eu trabalhava como locutor. Eu fazia o horário da tarde e a programação vinha toda gravada da matriz paulistana em fitas de rolo, já divididas em blocos de três músicas com as vinhetas no meio. Nosso trabalho era abrir e fechar os blocos com locução, além, é claro, de operar a mesa e colocar os comerciais. Era uma correria, já que tínhamos apenas três aparelhos "Akay". Era a fita da programação em um e nos outros dois a gente precisava rodar os rolinhos comerciais. Agora, imagine ter trinta segundos para tirar uma fita rolo, colocar a outra, posicionar o início do áudio e colocar no ar. Pois é. E ai de quem desse "branco" na programação. Mas os malucos conseguiam.

Pois bem. Na tarde anterior, antes de ir pro estúdio, eu já havia discutido com o diretor da rádio. O motivo era justo. As horas extras que eu havia feito no mês anterior não tinham vindo no pagamento, o que, infelizmente, acontecia com mais frequência do que a gente gostaria. Reclamei e ele justificou com um "acho que foi erro do RH". Como não era a primeira (nem a segunda, nem a terceira...) vez que isso acontecia, me irritei de verdade. Saí da sala e bati a porta. Naquela tarde foi a vez do diretor entrar no estúdio. Ele esperou entrar a sequência de músicas e veio com a explicação. "Você não fez nenhuma hora extra no mês passado". Olhei prá ele com cara de quem não estava entendendo nada (e não estava mesmo). Afinal, tinham sido mais de trinta horas feitas, o que refletiria de maneira importante no meu "salarinho" da época. Ele continuou com a história, justificando sei-lá-o-quê do horário, do fim de semana... já nem ouvia mais a ladainha. Só percebi uma frase do tipo "você nem é tudo isso".

Levantei da cadeira e dei minha solução definitiva para o problema. "Você é bom?" - perguntei. "Então faz você, porque eu estou indo embora". E foi o que eu fiz. Larguei a rádio no ar, a fita rolando com a última música da sequência e o diretor estupefato. Ele não acreditava na minha decisão. "Você não pode fazer isso" - ele bradou. Deixei ele falando sozinho. Virei as costas, abri a porta do estúdio e fui embora. Nem sei o que aconteceu depois. Voltei na semana seguinte prá acertar as contas no departamento pessoal. Já estava trabalhando em outra emissora. Encontrei o diretor do corredor e ele me prometeu que ali eu nunca mais trabalharia. Hoje eu até concordo com ele. Apesar de estar certo na minha reivindicação, não foi a decisão mais inteligente da minha carreira, com certeza. Tempos depois a gente se encontrou. Mágoas vencidas, ele me recontratou. E nunca mais discutiu minhas horas extras.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Refém de Rebelião - final

Aquela tarde tinha sido insana. Depois de três dias de muito trabalho e pressão, havíamos experimentado emoções intensas. Afinal, ficar refém de uma rebelião era a última coisa que eu poderia imaginar que fosse acontecer naquela empreitada. Momentos depois de sermos colocados na tal ante-sala pelos agentes, a adrenalina começou a voltar ao normal e só então eu me dei conta da maluquice que havia feito e do perigo que havia corrido. Foi quando entrou o diretor da penitenciária, muito nervoso. "Vocês estão bem?"- ele perguntou. Os quatro responderam que sim. "Quero as fitas gravadas" - continuou.
Ninguém entendeu nada. Era óbvio que o material era nosso. Eu e o repórter da outra emissora nos olhamos como que fazendo um trato. As respostas foram absolutamente iguais."De jeito nenhum". Com a nossa recusa imediata, veio a represália. O diretor anunciou que não sairíamos de lá enquanto não entregássemos as fitas. Estávamos sendo detidos sem acusação. Nosso crime era ter gravado uma negociação frustrada com os presos. Eu entendi imediatamente o que acontecia ali. Se as imagens fossem divulgadas pelas TVs o diretor seria exonerado imediatamente. Afinal, havia colocado quatro jornalistas em risco de morte. A conversa começou a ficar acalorada.
"A fita não sai da câmera. O material pertence à emissora e o que o senhor está fazendo é crime. Abra essa porta agora." O tom da minha voz foi aumentando. O outro repórter também se exaltou. A discussão começou a ficar grave. Naquela altura eu já me sentia descompensado. Estava cansado por conta da cobertura exaustiva e as noites mal dormidas na Belina, anestesiado por causa do medo durante o tempo junto aos rebelados e naquele momento revoltado com a situação absurda que enfrentava ali. Parti prá ameaça. Disse que denunciaria a prisão irregular de profissionais da imprensa. Fui apoiado pelo colega que sacou um daqueles celulares pré-históricos do bolso. Acho que nem sinal tinha, mas ele ameaçou ligar prá emissora e abrir um plantão. O diretor se calou e propôs um acordo. Se nós nos comprometêssemos em não divulgar as imagens, seríamos liberados. "Se a emissora concorrente não der as imagens no jornal, a gente também não dá". O trato foi feito. E quem diria, o diretor acreditou e fomos liberados.
Foi o tempo de sairmos pelo portão. Nunca fechei um texto tão rapidamente. O motorista saiu minutos depois da nossa libertação. O da concorrência foi logo em seguida. Naquela noite, nossas reportagens abriram os principais jornais de rede do Brasil. Pouco depois, aconteceu o óbvio: o diretor foi exonerado e a rebelião chegou ao fim. Era o que os detentos realmente queriam. Voltei prá casa depois de fechar o último texto com a sensação de dever cumprido. E uma história que jamais poderia esquecer.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Refém de Rebelião - parte II

Naquele momento em que fomos chamados prá entrar, os quase três dias em frente à penitenciária, as noites praticamente em claro, a falta de um bom banho, os lanches devorados rapidamente e todo o stress da cobertura começaram a valer a pena. Tínhamos uma oportunidade única. Acompanhar o final de uma rebelião de grandes proporções. Assim que as duas equipes de TV autorizadas pelo diretor passaram pelo portão, fomos cercados por agentes de segurança, que falavam conosco nervosamente. "Não saiam de perto de nós e não olhem diretamente nos olhos dos bandidos" - foram as recomendações mais repetidas. Nesse momento já entrávamos no páteo, onde pudemos confirmar da pior maneira a informação das mortes. Três corpos perfurados por estiletes feitos com barras de ferro estavam amontoados numa poça de sangue. Ao redor deles, vários detentos com o rosto coberto por camisetas, improvisando máscaras que deixavam apenas os olhos do lado de fora.

Os líderes da rebelião estavam todos juntos. Não sei explicar direito como ou quando aconteceu. Foi tudo muito rápido e a adrenalina me impediu de registrar a cena com exatidão. Todos gritavam. Agentes e detentos discutiam, sem que eu conseguisse entender direito o que era. Ouvi alguém dizer "sujou","caiu" ou alguma coisa assim. Quando olhei para o lado já estávamos cercados pelos rebelados. Estávamos reféns.

Eu, sinceramente, achei que ia morrer ali. Pensei na minha mulher. Estava casado há dois anos, sem filhos ainda. Não era capaz de entender mais nada do que se falava ao meu lado. O diretor discutia nossa libertação com o líder do movimento, dizendo que manter a imprensa como refém só iria piorar a situação deles. Foram vários minutos de tensão. Não sei dizer ao certo quanto tempo isso levou. Pareceu uma eternidade. Finalmente chegaram a um acordo e nós fomos liberados. Os agentes nos puxaram e saíram conosco num passo rápido, quase correndo. Nos deixaram numa ante-sala com portas de ferro e pediram que esperássemos o diretor.

Olhamos uns para os outros com uma óbvia sensação de alívio. Mas, quem disse que a história acabou aí?

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Refém de Rebelião - parte I

Se tem um tipo de cobertura que deixa qualquer jornalista cansado é rebelião em penitenciária. Primeiro porque, prá quem faz TV, as imagens são quase sempre as mesmas: fumaça de colchões queimados saindo de algum pavilhão distante, viaturas de polícia entrando e saindo e a famosa passagem do repórter com o portão de fundo, já que dali ninguém passa. E o pior é que você não pode "arredar o pé" do lugar. Tem que esperar uma equipe render a outra, o que em determinados casos pode levar muitas e muitas horas. O problema mesmo é quando não tem outra equipe. E era exatamente essa a realidade da emissora que eu bravamente representava na região oeste de São Paulo em 1995.

Sabendo de tudo isso, fui incumbido de ir para uma penitenciária estadual, onde os detentos haviam iniciado uma rebelião durante a noite anterior. As primeiras notícias davam conta de dois mortos. Eu teria que fechar reportagens para o jornal local e os dois nacionais. Pouco mais de uma hora e meia de estrada e lá estávamos nós. Rapidamente fechamos a primeira matéria. O motorista voltou para a emissora com a fita, enquanto eu e o cinegrafista montávamos plantão.
Passamos o resto da tarde sem informações ou imagens que valessem a pena. Liguei para a chefia e veio a ordem: não saia daí. O motorista chegou de volta e nós passamos a primeira noite revezando o banco da velha Belina da emissora. Cada um dormia um pouco, aguardando o desfecho da rebelião ou alguma imagem que valesse a pena (claro que nada aconteceu).

Segundo dia. As emissoras mais estruturadas revezavam suas equipes e a gente continuava lá. O motorista me levou num posto de gasolina ali perto. Fiz a barba, troquei a camisa e o paletó (repórter prevenido vale por dois). Íamos assistindo a cobertura num trailler de lanches que ficava em frente a penitenciária e tinha uma pequena TV. Quando o apresentador em São Paulo chamava as reportagens, vibrávamos. Era o melhor pagamento que poderíamos receber naquele momento. O problema todo é que a tal rebelião não acabava. Já eram três mortos e a negociação não avançava. No início da noite, liguei prá chefia por desencargo de consciência, mas já sabia a resposta... pois é... mais uma noite na Belina e nada de equipe prá render a turma que já estava prá lá de esgotada. O motorista ainda havia sido trocado numa das idas e vindas com as fitas de material a ser editado. Mas eu e o cinegrafista continuávamos lá.
O terceiro dia amanheceu com boas perspectivas. Os detentos davam sinais de cansaço e a rebelião poderia terminar a qualquer momento. Pelo menos essas eram as informações que vinham de dentro dos pavilhões. O juiz corregedor estava lá, junto com todas as autoridades possíveis e imagináveis. Fechei o material pro jornal do almoço (que era em Rede). Pouco depois um agente chega esbaforido do lado de fora. O diretor estava chamando duas equipes de TV prá entrar. Nossa missão seria acompanhar o final das negociações. A rendição dependia da entrada da imprensa.
Eu sabia que aquilo era uma loucura. Nem liguei prá chefia de reportagem. Me ofereci primeiro. Logo atrás veio a equipe da maior emissora que participava da cobertura (revezando, é claro)... Fomos autorizados a entrar na penitenciária. "Não perca nada" - eu disse. Nem precisava. O cinegrafista já tinha desligado o tally da câmera e entrou gravando. O que ninguém imaginava era o que nos esperava ali dentro. Eu conto no próximo post...

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A tal Linha Editorial

Primeiro, vamos dar a definição oficial: "Linha editorial é a política predeterminada pela direção do veículo de comunicação ou pela diretoria da empresa que determina a lógica pela qual a empresa jornalística enxerga o mundo. Ela indica valores, aponta paradigmas e influencia decisivamente na construção da mensagem. Orienta o modo como cada texto será redigido, define quais termos devem ser usados e qual a hierarquia que cada tema terá na edição final. No meu caso, a descoberta da tal "linha editorial" foi na prática.

Em fevereiro de 1989, aos 20 anos, eu já trabalhava num dos maiores jornais diários do interior de São Paulo e, junto com um colega que também dava os primeiros passos como repórter, fui destacado para a cobertura do Carnaval. Naquele ano, o prefeito resolveu não liberar dinheiro para as escolas de samba (falidas, como sempre) da cidade. Foi uma confusão. Sambistas reclamando, o povo querendo ver o desfile... sabe Deus o motivo, porque desfile de escola de samba no interior de São Paulo é um espetáculo de fazer chorar. A solução apresentada para acabar com a celeuma foi uma tal "Folia na Praça". Simples. Grupos de samba, mulatas, bandas, tudo na praça central da cidade, de graça, para o povo aproveitar os dias de festa.

Eu e o tal amigo fomos fazer a cobertura no fim de semana. Na nossa visão, o evento tinha sido bom. Praça cheia, muita alegria. Uma opção diferente que havia sido aprovada por todos que entrevistamos. Na segunda-feira, cheios de informações, sentamos na redação e começamos a escrever. O editor tinha nos dado uma página para a história. Mais que suficiente para o texto principal, box, povo-fala e fotos. Em duas ou três horas sem descanso na máquina de escrever, estávamos com as laudas prontas. Levamos para o secretário de redação. O cara era quase sempre mal-humorado. Criticava nossos textos de maneira ácida.

Na primeira leitura já veio a bomba: "Quem mandou escrever assim ?!". Ficamos olhando um pro outro. "Tem que meter o pau nessa festinha. Fizeram uma confusão danada na porta da igreja matriz, impediram os sambistas de desfilar e vocês escrevem como se fosse um sucesso?".Engoli seco. Mas não era prá fazer uma matéria sobre o que apuramos?
Tivemos que reescrever tudo seguindo as ordens do chefe, com uma sensação de incompetência tomando conta das nossas almas recém-convertidas ao jornalismo. "Linha editorial" - foi a explicação. E mais nada. Só tempos depois descobri a relação do jornal com a Igreja (incomodadíssima com a festa naquele local), a briga política com o prefeito que negara a verba para as escolas de samba e a falta de mídia da tal "Folia na Praça" para o jornal.
Uma lição inesquecível sobre a necessidade de adequar certas coberturas. Nunca mais cometi o mesmo erro. Com linha editorial não se brinca...