quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Culpa do Editor

Do alto dos meus mais de vinte anos de carreira posso garantir uma coisa: vida de repórter que se mete em invasões de terra não é fácil mesmo. E essa foi mais uma das minhas aventuras ao cobrir as ações do Movimento Sem Terra no interior de São Paulo que vale a pena ser contada. Há dias eu estava numa feira agropecuária só fazendo pautas prá lá de tranquilas. Julgamento de animais em pista, leilões, shows sertanejos e materinhas de comportamento. Numa daquelas manhãs preguiçosas o telefone toca. Era meu chefe. Eu deveria ir pro aeroporto imediatamente. Uma fazenda produtiva havia sido invadida no extremo oeste do estado por famílias do MST e o dono da fazenda (amigo pessoal do proprietário da emissora, diga-se de passagem), havia disponibilizado um avião bimotor para que eu pudesse chegar rapidamente no local com a equipe técnica. A reportagem seria para o principal jornal de rede da faixa noturna e a responsabilidade era grande. A orientação era deixar claro que a fazenda era produtiva e caracterizar a ação como um verdadeiro crime.

Trabalhei rapidamente ao chegar no local. Fechei a matéria no caminho para a pista de pouso com ajuda do editor em São Paulo contando, inclusive, com imagens de arquivo de um projeto de parceria de produção de algodão na fazenda. Eu mesmo tinha feito essa reportagem cerca de um ano antes. A tinta deveria ser forte. Mostrar que a ação dos sem terra era descabida e criminosa, prejudicando uma área usada para a agricultura. Ordem cumprida. A reportagem exibida agradou em cheio a direção da emissora e o dono da fazenda. Eu já estava de volta prá tal feira e tinha dado o assunto por encerrado. Engano. Na manhã seguinte, veio a encomenda: voltar na fazenda e "suitar" a história. A mesma operação foi montada. Fomos de avião até uma pista de pouso próxima e de lá um táxi esperava prá levar a equipe até a fazenda invadida.

O problema foi quando eu cheguei na área. Um grupo de sem terra estava reunido. Eu cumprimentei o pessoal de longe, passei pela cerca de arame e me aproximei. Outros sem terra chegaram, com foices e enxadas. O líder da ação foi claro para o cinegrafista: "Desliga a câmera que o negócio vai ficar feio prá vocês agora". Eles estavam visivelmente alterados e raivosos. Haviam assistido a matéria do dia anterior e não gostaram nada do encaminhamento. Começaram a cobrar exlicações com as foices e enxadas levantadas. Achei que ia morrer ali e ser enterrado em qualquer buraco. A coisa ficou pior quando olhei o taxista. Ele estava na estrada de terra, percebeu a situação e foi embora. Isso mesmo. Deixou a gente no meio do nada. Pensei rápido. A única solução foi culpar o editor. Expliquei que era ele quem mandava na reportagem, que eu havia discutido a questão, me mostrei indignado, fiz um teatro e tanto. Foram momentos tensos. Alguns sem terra gritavam. Outros batiam as ferramentas. Minha situação ficava cada vez pior.

Só depois de muita conversa consegui convencer o líder a nos liberar, em troca de uma entrevista que eu jurava que seria exibida na íntegra. A câmera foi religada e ele falou o que teve vontade. Juntamos o equipamento e fomos embora à pé pela estrada. Só bem adiante reencontramos o taxista que havia abandonado o local. "Fiquei com medo dos caras atacarem meu carro, mas estava esperando vocês" - foi a justificativa. Nem briguei com ele. Melhor um táxi longe do que ir à pé até o avião. Liguei prá redação e passei o caso. O cinegrafista (medroso) havia mesmo desligado a câmera. Tive vontade de matar o infeliz que havia perdido tudo aquilo. Não acreditei. De qualquer modo, fechei outra reportagem com as imagens do dia anterior e fiz uma passagem ali mesmo na estrada. Claro que a entrevista do líder foi cortada. Outra vez a matéria foi uma saraivada de críticas à ação dos sem terra. Tudo feito com uma condição: naquela fazenda eu não voltaria mais. E a culpa seria toda do editor.