quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Um Quebra-Cabeça da Ditadura

Sempre acreditei que grandes histórias jornalísticas podem surgir de situações simples. E esse caso que vou dividir com vocês, prova a tese de que investigar um bom palpite pode levar o repórter a descobertas que tranformam sua matéria e, em alguns casos, a vida das pessoas envolvidas. No início dos anos 2000, eu era gerente de jornalismo e repórter nacional de uma rede de TV no interior de São Paulo. A jornalista que apresentava nosso local à noite também fazia reportagens diárias. Numa delas, foi até um hospital psiquiátrico da cidade que atendia gratuitamente para fechar uma história simples: uma campanha de arrecadação de doações. Ela resolveu ouvir alguns pacientes para compor seu VT. Entre eles, um era especial. Estava internado há anos no local sem nenhuma referência familiar ou de amigos. Tinha sido encontrado na rua e levado para lá. Havia esquecido totalmente sua história e apesar de amistoso, inteligente e bom de papo, não de lembrava de nada que pudesse ajudar as assistentes sociais nessa busca. Durante a entrevista dela, veio a surpresa. Ele começou a falar sobre tortura: "Eles me deram muito choque" - contava. "Eu fiquei no Dops, eles me bateram muito". As declarações não passaram dessas duas frases, mas quando ela chegou na redação, percebi que a história merecia investigação.
Sabíamos que ele era de Cabrobó por conta do seu documento. Era um José, filho de uma Maria com dois sobrenomes comuns. Tarefa difícil. Resolvemos ligar para Petrolina, a cidade mais importante daquela região em busca de ajuda. Começamos pela Secretaria de Assistência Social, a opção mais óbvia de todas. Na primeira ligação, contamos a história e de imediato tivemos a surpresa: a secretária (ela mesma) tinha os mesmos dois sobrenomes do nosso personagem. "Não é possível" - pensei. Pedi prá falar com ela. Pelo telefone, contei a história do homem sem memória, disse o nome e a filiação. Do outro lado da linha, ela começou a chorar. "É meu irmão. Ele foi para São Paulo clandestino num navio." Quando se acalmou, completou a história. O tal José havia mantido contato com a família até a época da ditadura militar. Era militante político, acabou preso como tantos outros. A mãe recebia as cartas carimbadas pelo Exército. Até que um dia não vieram mais correspondências. Eles procuraram por ele, mas nenhuma informação era dada pelo Governo. José se perdeu nos porões do esquecimento. Do esquecimento oficial do país e dele mesmo, quem sabe por conta das torturas.
Não pensei duas vezes. Voltei ao hospital para conhecer José. Um homem de uns cinquenta e tantos anos, articulado, boa conversa. Incapaz de dizer quem era ou de onde tinha vindo. Nem do Dops ele se lembrava mais. Aquela entrevista tinha sido um lampejo. Um momento, talvez único, por conta do microfone e da câmera. Ofereci a história para o nosso jornal de Rede em São Paulo e claro, ela foi imediatamente aceita. No dia seguinte parti de avião para Petrolina com um cinegrafista. Encontramos a irmã, secretária de Assistência Social. Mostramos a imagem do irmão desparecido no monitor, que ela reconheceu imediatamente. No outro dia fomos até Cabrobó, de carro, atravessando o sertão pernambucano. Entrevistei a mãe e outros irmãos. As cartas dele não existiam mais. A mãe havia queimado tudo, desgostosa com o sumiço do filho caçula e sem esperança de reencontrá-lo após mais de trinta anos. De posse de todo esse material, voltei a São Paulo. Fui na antiga sede do Dops, hoje transformada em museu. Gravei nas antigas celas, entrei numa delas e imaginei José ali, amarrado, torturado pelas suas convicções. No dia seguinte fui aos arquivos policiais da época, abertos pelo regime democrático. Busquei incessantemente a ficha do tal José. Encontrei um registro sem foto de uma pessoa com o mesmo nome, mas sem filiação. Seria ele? Como a maior parte dos registros da época se perdeu ou foi destruída, decidimos não usar aquela ficha na reportagem. Não era possível afirmar responsavelmente que aquele documento era dele. De qualquer modo, fechei a história. Dias depois, José reencontrou a família, que foi buscá-lo no interior de São Paulo. Tudo devidamente documentado pelas nossas câmeras.
Não posso dizer que não me senti orgulhoso dessa reportagem. Montamos um quebra-cabeça de uma vida a partir de uma declaração que poderia ter sido ignorada, já que se tratava de uma pessoa internada numa instituição de tratamento mental. Cada telefonema, cada entrevista, cada imagem dessa história também marcou minha carreira de repórter. Afinal, não é todo dia que a gente consegue promover um reencontro como esse.

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